Cidadania, cultura e direitos: porque livros são artigos de todos
Não é incomum andar por ruas ou shoppings e se deparar com espaços vazios, antes ocupados por livrarias. Entre 2007 e 2017, o número de livrarias e papelarias no Brasil apresentou redução de 29%, chegando ao patamar de 52.572, segundo análises da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Em 2018, por exemplo, grandes redes de livraria deram início a processos de recuperação judicial, o que ocasionou o fechamento de inúmeras unidades em todo o país.
A crise estende-se ao setor editorial como um todo e pode agravar-se ainda mais considerando a reforma tributária proposta pelo Ministério da Economia, que põe fim à isenção dos livros. A Constituição Federal de 1988 garante, no inciso VI, do Art. 150, que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. A Lei 10.865/2004 também isenta os livros do PIS (Programa de Integração Social) e da Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social).
A proposta de alteração sugere substituição dos impostos citados acima com a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Se aprovada, a venda de livros estará sujeita a um tributo de 12%, o que aumenta o valor final do produto para o consumidor.
Educação, cultura e conhecimento: a importância do acesso ao livro
De acordo com o levantamento VAT on Books, realizado pela International Publishers Association (IPA) sobre o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) em livros, dos 134 países pesquisados, 53 (40%) não aplicam qualquer tributo sobre os livros e 32 (24%) seguem o imposto normalmente. Na América Latina, a maioria das nações não cobra o tributo. Em seu relatório, a IPA defende que “livros não são commodity como qualquer outra: são ativos estratégicos para a economia criativa, facilitam a mobilidade social e crescimento pessoal, além de trazer benefícios sociais, culturais e econômicos de médio e longo prazo.”
Segundo Bel Santos Mayer, integrante da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e co-gestora da rede LiteraSampa, que integra a Rede Temática do GIFE Leitura e Escrita de Qualidade para Todos (LEQT), a literatura pode ser uma parceria durante a vida de todas as pessoas. Entretanto, cita reflexões da antropóloga francesa Michèle Petit para afirmar que, para aquelas que não têm direitos básicos garantidos, a literatura pode ser, eventualmente, a única porta e oportunidade para que essa pessoa acredite ser possível ultrapassar as fronteiras da exclusão.
“Estamos vivendo um momento importantíssimo de nos juntarmos porque não vamos construir um país menos desigual, com participação e redução da miserabilidade se não tivermos leitores e leitoras”, afirma a coordenadora.
“Taxar o livro não salva a economia, ameaça a cidadania”
O trecho acima é título do posicionamento público da RT LEQT frente à possibilidade de taxação dos livros. O documento reforça que as mais de 80 organizações da sociedade civil atuantes no campo da leitura que compõem a Rede concordam que taxar livros é seguir na contramão do direito à leitura e escrita e à educação integral de qualidade no país. “A Rede LEQT considera que a medida afetará negativamente toda a cadeia produtiva do mercado editorial e colocará em risco o direito ao acesso ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas, cujas políticas públicas já estão bastante fragilizadas, apesar de asseguradas pela lei 13.696/2018, da Política Nacional de Leitura e Escrita, ainda não implantada pelo Poder Executivo.”
Bel cita a pesquisa O Brasil que lê: bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores, desenvolvida pelo Centro de Cultura Luiz Freire e pela Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), para explicar a relação entre leitura e cidadania. As pesquisadoras realizaram uma análise dos 349 mediadores de leitura atuantes nas 143 bibliotecas analisadas e descobriram que nas 45 cidades onde as bibliotecas pesquisadas estão localizadas, a média de acesso da população com 25 anos ou mais que tem Ensino Superior completo é de 10,9%, enquanto entre os mediadores, o número passa a 42,1%, demonstrando maior acesso e permanência no sistema educacional entre leitores.
“Com esse dado, estamos dizendo que existe um Brasil que lê e se movimenta, muda suas condições econômicas, bem como o Índice de Desenvolvimento Humano do território onde a leitura está acessível para mais pessoas. Tornar o livro mais caro é um ataque a essa cidadania que está sendo construída com o Brasil que lê”, defende Bel.
Para a professora e especialista, a manifestação de diferentes pessoas, bem como a união de esforços e advocacy pela desoneração do livro faz todo sentido, uma vez que leitores que construíram a primeira estante de livros em suas casas, por exemplo, não devem lutar sozinhos. “Nós precisamos ter autores, editoras grandes e pequenas, as organizações sociais, a cadeia criativa e de arte toda junta porque sem pessoas em condições de ler o mundo e encontrar palavras para nomeá-lo e narrá-lo, não teremos público para outras produções culturais.”
Artigo de todos
A proposta do Ministério da Economia não foi bem recebida em diferentes instâncias. Nas redes sociais, celebridades, estudiosos e perfis de influenciadores digitais no tema endossaram a campanha #DefendaOLivro, reforçando a importância do instrumento para a educação e o acesso a cultura e conhecimento.
Assim como a LEQT, outros grupos e redes emitiram cartas e notas públicas com posicionamentos contrários à proposta de tributação. No início de agosto, um grupo de oito organizações, entre elas a Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (AbreLivros), a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livro (SNEL) criaram o Manifesto em Defesa do Livro.
Apesar de pontuar que as instituições ligadas ao livro estão conscientes da necessidade da reforma e simplificação tributária no Brasil, a nota afirma que “não será com a elevação do preço dos livros – inevitável diante da tributação inexistente até hoje – que se resolverá a questão. Menos livros em circulação significa mais elitismo no conhecimento e mais desigualdade de oportunidades no país das desigualdades conhecidas, mas pouco combatidas.”
A União Brasileira de Escritores (UBE), por sua vez, reforçou que, para promover o desenvolvimento e aumentar a competitividade brasileira no cenário global, é necessária a capacitação profissional e formação técnica, cultural e acadêmica das presentes e futuras gerações, “desafio inviável sem o acesso amplo à leitura”.
Assim como muitos outros, o documento também endereça polêmica envolvendo a fala do ministro da economia Paulo Guedes – de que o governo federal “dará livro de graça para o mais frágil” – ao reforçar que: “O acesso à leitura jamais deve ser privilégio, mas uma prerrogativa de toda a população. Os cidadãos de baixa renda têm o direito de escolher o que querem ler e não podem ficar sujeitos às doações de livros pelo poder público, pois tal paternalismo implica instrumentalizar os conteúdos conforme a orientação político-ideológica do governo de plantão.”
Bel explica que a resistência cultural a partir da realização de mediação de leitura, saraus e festas literárias periféricas, bem como o movimento de construção desses espaços para circulação de autorias periféricas, negras e indígenas – o que ocasionou a aparição desses autores nas livrarias centrais – se deu, principalmente, devido à autonomia de escolha do que as pessoas desejam ler.
“A literatura pressupõe um caminho que se faz para dentro e para fora, além de ser esse lugar da imaginação, da antecipação, da regeneração. Uma obra não é a mesma para mim e para você. Então o único caminho é a bibliodiversidade, é a diferença e a diversidade de gêneros literários. É poder ter poesia, prosa, romance, novela, história em quadrinhos, biografias. É essa diversidade que vai dar a possibilidade de cada um vivenciar um processo de encontrar um livro para chamar de seu, um livro para se ver. E esse livro vai conversar tanto com cada um que ele chama outra obra, que chama outra e assim a pessoa vai construindo um itinerário como leitor e vai acessando outras literaturas.”