Assista à Live: “Literatura em presídios: A quem incomoda?”
Para especialistas, portaria da Funap vai na contramão de norma do CNJ e pode inviabilizar direito à remição de pena por meio da leitura no sistema prisional paulista
No dia 10 de dezembro, data em que se celebrou o Dia Internacional dos Direitos Humanos, a Rede LEQT e o Instituto Emília, com o apoio da FEBAB (Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições), realizaram a live “Literatura em presídios: A quem incomoda?”. O evento teve como foco a agenda política do direito à literatura voltado às pessoas que vivem em situação de privação de liberdade. Assista abaixo.
O encontro promoveu uma reflexão sobre a remição de pena pela leitura nas penitenciárias, tendo em vista os avanços obtidos pela nova resolução do 391 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), publicada em maio de 2021, e os retrocessos impostos pela recente Portaria n° Direx 077/00/2021 da Funap (Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” de Amparo ao Preso), que restringe e pode inviabilizar a efetivação desse direito nas unidades prisionais no Estado de São Paulo.
O debate contou com as convidadas: Cláudia Aratangy, advogada, especialista em gestão de projetos e formação de professores e voluntária do Projeto Remição em Rede; Cátia Lindemann, bibliotecária, presidente da CBBP (Comissão Brasileira de Bibliotecas Prisionais), representante da América Latina e Caribe dentro do GT Prison Libraries da IFLA/UNESCO e membro do GT CNJ dentro do Plano Nacional de Fomento à Leitura nas Prisões; Janine Durand, educadora, especialista em políticas públicas, idealizadora e articuladora do Remição em Rede e mediadora de clubes de leitura em penitenciárias; e Juliana Borges, pesquisadora e autora dos livros “Encarceramento em massa” (2019) e “Prisões” (2020).
A mediação do encontro foi feita por Ana Lima, economista, integrante do grupo coordenador da Rede LEQT, coordenadora do INAF, cofundadora e consultora da Conhecimento Social – Estratégia e Gestão, cofundadora do coletivo Delibera Brasil e sócia-fundadora do Todos Pela Educação.
Acesso à literatura ainda é um desafio nas prisões brasileiras
Na live, Cátia Lindemann lembrou que a existência de bibliotecas nas prisões é assegurada pela Lei 13.163/2015 e está prevista na Constituição: “não dá para transformar o livro e a leitura nas prisões como assistencialismo, como barganha (…) É um direito!”. Ela salientou ainda que não adianta implantar bibliotecas em todas as prisões, se os livros não forem apresentados à população carcerária.
Apesar de ser um direito, ele está longe de ser assegurado. Juliana destacou e discutiu o triste cenário apresentado pela pesquisa Diagnóstico de práticas de educação não formal no Sistema Prisional do Brasil: “mais de 51% das pessoas presas não concluiu o ensino fundamental, 15% não tem o ensino médio completo e apenas 0,5% tem educação superior completa. Apesar da baixa escolaridade, somente 10,6% do total de pessoas encarceradas participam de atividades educacionais. Desses 9,6% estavam envolvidos em atividades de educação formal e 1% em atividades educacionais complementares, de educação não-formal como leitura, esportes e cultura”. O estudo foi elaborado entre 2020 e 2021 pelo Grupo Educação nas Prisões, composto pela Ação Educativa, Unifesp, Conectas Direitos Humanos, ITCC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Remição em Rede, NESC – Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública/SP e GEDUC do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Frente a esse cenário, as especialistas foram unânimes ao afirmar que a portaria paulista dificulta a efetivação de direitos. Sob a perspectiva jurídica, Cláudia Aratangy, comparou o texto do CNJ com o da Funap. Ela salientou que a portaria paulista estabelece uma seletividade de um público-alvo, enquanto “a resolução do Conselho Nacional de Justiça é muito mais democrática”, pois permite que aquelas pessoas que não estão alfabetizadas tenham acesso a audiolivros e a mediações de leitura.
Nessa mesma linha, Janine Durand pontuou que a censura tem muitas facetas e reiterou a importância da mediação de leitura: “não adianta ter uma biblioteca, ter uma sala de leitura, se a gente não tiver essa ponte entre livros e leitores. Esse lugar humano, de afeto de indicar, de sugerir e de apoiar essa travessia”.
Outra crítica feita à Funap é que ela retirou das unidades prisionais a autonomia de realizar parceria direta com programas e projetos, centralizando na própria fundação toda e qualquer atividade de leitura.
Frente aos retrocessos impostos pelo instrumento, em 4 de novembro de 2021, diversas instituições, entre elas a Rede LEQT e alguns de seus integrantes como a Ação Educativa, o Cenpec – Centro de Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária, o IBEAC – Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário e o Instituto Emília, assinaram o manifesto público exigindo a revogação da portaria da Funap.
Ao destacar a exclusão social e os aspectos históricos, políticos e sociológicos do processo de encarceramento em massa, Juliana Borges afirmou que “há uma tentativa de não só aprisionar os corpos, mas de aprisionar também a mente (…) Por isso a literatura é considerada tão subversiva (…) a literatura transporta a gente para outros lugares, ela abre perspectivas”. Ela destacou também a necessidade de superar a ideia de que a privação de liberdade não é suficiente para recuperar as pessoas que estão no sistema carcerário.