Em entrevista, Zoara Failla explica queda no número de leitores, em especial entre adolescentes e jovens, e analisa os desafios para ampliação da leitura no País

Coordenadora do Instituto Pró-livro avalia resultados da nova edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil e ressalta o papel da escola, do professor e das bibliotecas no despertar do interesse pela leitura e no acesso ao livro.

Amanda Proetti, Estúdio Cais

Qual é o perfil, comportamento, predileção e motivação do leitor brasileiro? E como tudo isso vem mudando ao longo dos últimos treze anos? A 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil tenta responder essas e outras questões. Realizada a cada quatro anos desde 2007 pelo Instituto Pró-Livro (IPL), a iniciativa estuda o comportamento leitor do brasileiro com o propósito de influenciar e orientar ações e políticas públicas no campo do livro e da leitura.

Em parceria com o Itaú Cultural, a nova edição da série entrevistou mais de oito mil pessoas, de 208 municípios – quase seis mil só nas capitais dos 26 estados mais o Distrito Federal. Entre as novidades estão o estudo dos hábitos e interesses do leitor de livros de literatura – em papel e outras plataformas.

Em entrevista, Zoara Failla, gerente de pesquisas do Instituto Pró-Livro e integrante da LEQT, falou sobre os destaques desta edição, como os fatores que mais influenciam o interesse pela leitura, especialmente entre adolescentes e jovens, o papel do mediador e a relação entre os indicadores de leitura e a educação básica.

A ausência de bibliotecas escolares em grande parte das escolas públicas, os impactos da pandemia como determinante para o aumento das desigualdades educacionais, a concorrência das mídias sociais e dos dispositivos eletrônicos com o livro pelo tempo livre de crianças e adolescentes, a importância das políticas públicas, o papel da sociedade civil e o perfil das famílias e dos professores brasileiros no incentivo à leitura foram outros aspectos abordados pela coordenadora. A seguir, confira a entrevista na íntegra.

LEQT: O número de leitores no Brasil diminuiu cerca de 4,6 milhões entre 2015 e 2019, sobretudo entre adolescentes de 14 a 17 anos e jovens de 18 a 24 anos e entre indivíduos com nível de escolaridade médio e superior. Como esse resultado se relaciona com o cenário da educação básica brasileira e com as políticas do livro, considerando o aprofundamento das desigualdades em razão da pandemia?

Zoara: Houve redução no percentual de leitores em todos os segmentos. A única boa notícia foi a ampliação de 67% para 71% no percentual de leitores entre 5 e 10 anos. Nas demais faixas etárias, vimos estabilidade ou redução, sendo a redução mais expressiva a observada na faixa entre 14 e 18 anos, de 75% para 67%. O decréscimo também aparece entre estudantes. No entanto, houve aumento de 82% para 86% no percentual de leitores cursando o Ensino Fundamental I, o que está em sintonia com a elevação na faixa etária de 5 a 10 anos. A redução aparece entre estudantes que completaram o Fundamental II (de 84% para 75%) e no nível superior (de 91% para 86%).

A pesquisa traz algumas pistas mais pontuais sobre a queda no percentual de leitores em alguns segmentos. O uso do tempo livre foi a explicação com maior ressonância entre os analistas desta edição para explicar a redução no percentual de leitores com nível superior de escolaridade. A pesquisa revela que 86% desses leitores usam com frequência o WhatsApp (eram 76% em 2015). As redes sociais (Facebook, Instagram ou Twitter) também parecem roubar o tempo para os livros, pois foram citadas por 64% daqueles com nível superior, enquanto o percentual dos que leem livros no tempo livre foi de 42% (eram 46% em 2015).

Importante destacar que na faixa etária entre 5 e 10 anos, assistir vídeos ou filmes em casa (71%) perde somente para assistir TV (82%) e escrever (75%). Entre crianças e adolescentes, outra atividade bastante realizada no tempo livre é jogar vídeo game, citada por 40% das crianças de 5 a 10 anos e por 38% daquelas entre 11 e 13 anos, o que confirma que essas têm sido opções dos pais para o entretenimento das crianças durante seu tempo livre, o que também reduz o tempo para a leitura de livros, atividade citada por 29% das crianças de 5 a 10 anos.

Considerando crianças e adolescentes, a proporção dos que realizam atividades relacionadas à internet no tempo livre é maior justamente entre os adolescentes de 14 a 17 anos (66%). Portanto, a pesquisa demonstra que a concorrência pelo tempo livre das demais atividades com a leitura de livros também é maior entre adolescentes em idade para estar no Ensino Médio. Mas, a revelação de que quase metade das crianças gostam muito de ler traz esperança e inquietação: por que a partir dos 18 anos o percentual de quem não gosta de ler aumenta de forma acentuada, passando de 3% para 20%? O que estamos deixando de fazer ou onde estamos errando, em especial quando esses jovens concluem o Ensino Fundamental II e chegam ao Ensino Médio? Seriam os livros infantis mais atraentes e identificados como leituras prazerosas, enquanto as leituras indicadas pela escola não conseguem despertar esse prazer ou gosto pela leitura? As famílias percebem a importância de estimular a leitura enquanto os filhos são crianças, mas têm mais dificuldades para atuarem como mediadores ou influenciadores com os filhos adolescentes? Certamente devemos buscar as respostas no cenário da educação básica.

Os impactos da pandemia certamente devem aumentar as desigualdades sociais e educacionais, dadas as dificuldades de acesso. Nas famílias mais vulneráveis socialmente, a ausência de livros em casa e a dificuldade de acesso à internet para acompanhar as aulas ou mesmo para acessar informações e acervos digitais ficaram escancaradas. Essa exclusão deve impactar os resultados da próxima edição da Retratos, principalmente os indicadores de aprendizagem e escolaridade nos próximos anos, ampliando a exclusão social desses jovens.

LEQT: Frente a esse cenário, é possível identificar os desafios para a formação leitora ou o letramento literário nas escolas do ensino básico?

Zoara: Sim. Alguns estudos revelam fatores como o perfil leitor do professor ou sua sobrecarga de atividades, a ausência de bibliotecas escolares e acervos que atendam às atividades do currículo e ao projeto pedagógico da escola, práticas leitoras inadequadas ou pouco atraentes ou ausência de espaço nos currículos para a prática leitora, entre outros problemas apontados por educadores. A Retratos nos traz ao menos uma indicação sobre esse desafio ao revelar o perfil leitor do professor. Nesta 5ª edição da pesquisa, 736 entrevistados (8% da amostra) informaram ser professores ou trabalharem na área da educação. Destes, 63% dizem gostar muito de ler e 31% gostar um pouco. A maior parte deles é formada por leitores (80%), sendo que 52% destes estavam lendo no momento da entrevista. Ao analisar os livros lidos, verificamos que as preferências são muito semelhantes às da população em geral: a Bíblia fica em primeiro lugar. Ao serem analisados os autores do último livro lido, entre os cinco mais citados, somente um clássico: Machado de Assis. Livros religiosos ou de autoajuda aparecem com maior frequência entre os mais citados.

Apesar de pequena, a amostra nos permite inferir algumas pistas acerca dos desafios. Promover a leitura, em especial entre os jovens, exige do professor, como mediador, que goste de ler e que tenha um grande repertório de leituras para identificar, indicar e compartilhar suas experiências e emoções. Tendo esse repertório, o professor pode atrair e conquistar esses novos leitores, em especial quando identificamos que o uso do tempo livre está sendo atraído pelas redes sociais. Mas isso depende também da disponibilidade ou do acesso aos livros que gostaria de indicar para a leitura dos seus alunos. Aqui, outra lacuna importante: a ausência de bibliotecas escolares em mais de 60% das escolas públicas limita o repertório de leituras e o acesso a títulos que possam ser mais atraentes.

LEQT: O que mudou no perfil e nas motivações, hábitos e preferências dos leitores e consumidores de livros ao longo dos treze anos do estudo?

Zoara: A série histórica revela que o percentual de leitores se mantém em um patamar de 50%, com pequenas elevações em 2007 e 2015. Também a média de livros lidos em um período de três meses tem se mantido. Na quarta edição, o destaque foi o aumento no percentual de leitores adultos, em razão da elevação no número de livros religiosos lidos. Entre crianças, adolescentes e jovens de 5 a 18 anos, identificamos o maior percentual de leitores, mas também uma queda significativa. Já os leitores digitais cresceram a partir da 4ª edição e o impacto desse fenômeno aparece, principalmente, no uso do tempo livre em redes sociais e na redução do interesse pela TV, em especial nas classes A e B e em níveis de escolaridade superior e médio. Também cresceu o percentual de leitores de notícias e de busca de informações e conhecimento, em especial entre aqueles com maior escolaridade e em melhor situação socioeconômica, identificando um interesse mais utilitário da leitura nesses segmentos. Houve pouca alteração nas listas de livros e autores citados como conhecidos e marcantes, o que indica que as obras citadas, como alguns clássicos, devem ter sido buscadas na memória escolar. Em relação aos consumidores, identificamos um aumento na menção de autores, títulos e preços como fatores que influenciam a compra, apesar de o tema seguir na frente. O interesse pela autoria aponta o fenômeno das mídias sociais na formação de seguidores e não de um público leitor, como afirma Fabio Malini, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Espírito Santo.

LEQT: Esta edição dedicou um módulo específico aos hábitos de leitura de literatura, com mais dados sobre os fatores que influenciam o interesse por literatura, autores preferidos e formatos e/ou dispositivos escolhidos. Por que esta direção foi tomada e que resultados saltam aos olhos nesse segmento?

Zoara: Desde a segunda edição, a pesquisa busca conhecer o perfil e o que esses leitores leem, mas nesta edição ampliamos as questões para conhecer as motivações, influências e preferências de leitores de literatura em livros e em outros dispositivos ou plataformas. Sem dúvida, essas informações podem orientar ações mais efetivas no uso desse suporte como aliado na formação de leitores.

Em relação aos livros de literatura, dos 52% de leitores, 28% declararam ser leitores de livros de literatura e 30% informaram que são leitores de literatura apenas em outros meios. Convidamos Fabio Malini para analisar os dados sobre o leitor digital. Uma de suas constatações foi a de que os 32% que usam a internet para a compra de livros são motivados pelo autor do livro. Essa parcela de consumidores demonstra uma mutação na ideia de público leitor, deslocando-a para a concepção de amigo/seguidor, um novo estilo de audiência que não busca apenas consumir a obra, mas o entorno cognitivo e subjetivo dos autores, numa relação de proximidade com estes em redes, mídias sociais e eventos offline. Uma revelação que veio na contramão do esperado foi a de que somente 2% dos leitores informaram seguir a indicação de um influenciador digital (de blogs ou redes sociais) na escolha de um livro de literatura.

O suporte preferencial da leitura digital é o telefone celular, o que amplia a leitura em trânsito. Em relação aos gêneros literários em outras plataformas, sobretudo a digital, o conto e a poesia surgem como o gênero preferido entre esses leitores: 78% responderam ter lido, nos últimos três meses, contos; 65%, poesias; 60%, crônicas; e 49%, romances. Certamente, a preferência deve-se ao fato de serem textos mais curtos e de leitura mais rápida, o que facilita compartilhar e ler nesses meios mais ligeiros.

A 5ª edição da pesquisa também traz uma análise detalhada das diferenças de perfil entre leitores em geral e leitores de livros de literatura e destes apenas em outros meios. Lembrando que a leitura da Bíblia e de livros religiosos impacta o número de leitores em geral, vale destacar que entre leitores de livros de literatura há mais estudantes, assim como mais crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos.

Entre os leitores de literatura apenas em outros suportes, o que se observa é que a leitura que fazem é mais fragmentada, de materiais publicados e acessados em aplicativos como Facebook e WhatsApp. Nesse indicador, não foram observadas diferenças significativas entre esses leitores segundo renda e classe social. Em relação ao gosto pela leitura, 54% dos leitores de livros de literatura e 48% dos leitores de livros em geral declararam que gostam muito de ler. Já, entre os leitores de literatura em qualquer suporte, essa proporção foi de 24%. Vale destacar o predomínio de leitoras (56%) em relação ao número de leitores (44%).

Comparando número de livros lidos, os leitores de livros de literatura leram em média 2,89 livros de literatura por vontade própria nos três meses anteriores à realização do estudo, sendo 2,28 livros de literatura lidos inteiros, quase o dobro das médias observadas entre os leitores de livros em geral (1,56 e 1,23, respectivamente).

O despertar do interesse por literatura revela a importância da indicação do professor (52%), que aparece em primeiro lugar, seguido de um filme assistido sobre livro ou história (48%) e da indicação de amigos (41%). O papel dos professores nessa indicação é ainda mais relevante entre as crianças e adolescentes de 5 a 13 anos, entre os quais, mais de 75% declararam ter começado a se interessar por literatura em função das indicações de professores. Já os filmes são a principal influência citada entre os leitores de literatura a partir de 25 anos. Vale destacar que os influenciadores digitais foram citados por 32% dos adolescentes de 11 a 13 anos e por 37% entre aqueles com 14 a 17 anos, percentuais superiores ao observado no total de leitores de literatura (25%).

LEQT: A casa é o lugar onde a maior parte dos leitores brasileiros costuma ler (82%), contra um quarto deles (23%) cujo hábito de leitura se dá na sala de aula e 15% que vão à biblioteca da escola ou faculdade. Que tipo de orientação esses resultados fornecem em relação ao papel das famílias e da escola no incentivo à leitura?

Zoara: Nesses números estão considerados leitores de todas as faixas etárias, incluindo adultos e não estudantes. Esses percentuais sobem em relação à leitura em sala de aula e bibliotecas no recorte de estudantes. Para avaliar o papel das famílias e dos professores, os dados sobre influenciadores são mais reveladores. Há consenso sobre a importância do mediador na formação de leitores e no despertar do interesse pela leitura, mas 67% dos brasileiros não identificam quem despertou seu interesse ou gosto pela leitura. Esse alto percentual, que inclui quem não gosta de ler, pode revelar a ausência de alguém significativo, na família ou na escola, que desempenhe essa mediação. Por outro lado, o professor (11%) e a mãe (8%) continuam sendo os mais citados como principais influenciadores no gosto pela leitura.

A importância de um influenciador aparece ao compararmos leitores e não leitores: a proporção dos que não identificam nenhum influenciador ou não gostam de ler varia de 82% entre não leitores para 52% dos leitores. Também é maior a proporção dos que dizem que nunca viam suas mães lendo entre não leitores (60%) do que entre leitores (40%). Até mesmo receber livros de presente pode influenciar positivamente os leitores, haja vista que 76% dos não leitores nunca ganharam livros, enquanto entre leitores essa proporção é bem mais baixa (47%). A pesquisa também confirma maior percentual de leitores em famílias que têm o hábito de ler e com melhor nível de escolaridade dos pais ou responsáveis.

A escola ou um professor foram os mais indicados pelos leitores de literatura (52%) como quem despertou seu interesse pelo gênero. Essa constatação merece uma reflexão: qual é o perfil leitor e de escolaridade das famílias brasileiras? Quantas famílias têm livros em casa e têm o hábito de ler para os filhos ou leem na frente de seus filhos? Por ter uma amostra de indivíduos, a Retratos não traz números que consideram as famílias como unidade, mas podemos inferir, pelo percentual dos que informam que mães ou pais liam para eles e também pelo percentual de indivíduos não leitores, que uma grande parcela das famílias brasileiras não são formadas por leitores. As crianças e jovens de famílias não leitoras e de origem social mais vulnerável dependem especialmente das escolas, das bibliotecas escolares e dos professores para o despertar do interesse e gosto pela leitura.

LEQT: Apesar de apresentar um decréscimo em comparação com edições anteriores, a Bíblia e a categoria de livros religiosos ainda ocupam as primeiras posições entre as preferências dos leitores. Podemos relacionar esse resultado ao contexto de desigualdades socioeconômicas que marcam o país?

Zoara: A Bíblia segue sendo a leitura mais citada em todas as listas. É citada 25 vezes mais do que o segundo colocado. Entre os dez primeiros autores do último livro lido, foram lembrados autores evangélicos, espíritas e católicos, sendo que alguns aparecem desde a segunda edição da pesquisa, como Zibia Gasparetto, Allan Kardec, Chico Xavier e Edir Macedo. Identificamos uma elevação acentuada no percentual de leitores da Bíblia e de livros religiosos na edição de 2015 que impactou no percentual de leitores adultos. Ao analisar o perfil desse leitor, verificamos que é a leitura preferida de quem não é estudante ou tem menor escolaridade e renda. A leitura da Bíblia é mais citada entre os mais velhos, chegando a 51% após os 50 anos. Na última edição, 15% dos estudantes entrevistados citaram a Bíblia como o livro que mais gostavam de ler, chegando a 42% entre os que não estavam estudando no momento. No que se refere à escolaridade, aparece mais entre os que concluíram o Ensino Fundamental I e II (40% e 35%, respectivamente) e menos entre quem tem nível superior (20%). Esses resultados podem ser explicados, em parte, pela ampliação do número de evangélicos e pentecostais no país. Não podemos dizer que reflete as desigualdades socioeconômicas, mas a pesquisa indica que para muitos esta é a única leitura, principalmente entre uma parcela da população com baixa escolaridade e que vive em comunidades com pouco acesso a bens culturais.

LEQT: Que caminhos a pesquisa permite vislumbrar na direção de políticas públicas para a melhoria dos indicadores de leitura no Brasil?

Zoara: São muitos os desafios a serem enfrentados para melhorarmos esse ‘retrato’, mas não podemos retroceder. Apesar da manutenção do patamar de 50% de leitores desde 2007, a redução no percentual de leitores motivada pelo uso do tempo livre na internet nos aponta um grande desafio. É preciso ter essa ferramenta como aliada no compartilhamento de experiências leitoras. Além disso, o local que privilegia a formação de leitores ainda é a escola. Apesar de a pesquisa revelar que a família é a principal influenciadora no despertar do interesse pela leitura, sabemos que a maioria das crianças vêm de famílias não leitoras. A mudança desse cenário requer vontade e compromisso de gestores públicos e de recursos para implementação das políticas, da formação de professores leitores, de práticas leitoras e atividades integradas e orientadas pelos currículos escolares e projetos pedagógicos e de bibliotecas em todas as escolas públicas. As políticas públicas devem garantir essas condições essenciais.

LEQT: Que fatores podem contribuir para democratizar o acesso ao livro e à leitura no país, dado que 27 dos 44 milhões de consumidores de livros são das classes C, D e E?

Zoara: O preço do livro foi citado por 22% dos compradores de livro como fator importante para a compra. Sem dúvida, a tributação do livro proposta pelo governo federal, se aprovada, deve dificultar o acesso via compra para leitores e consumidores das classes C, D e E, que são bem mais numerosos do que os 17 milhões das classes A e B (leia o posionamentod a LEQT sobre a proposta de taxação). Estes não devem sofrer tanto esse impacto. Certamente, essa redução no acesso será sentida na próxima edição da Retratos da Leitura no Brasil com a redução no percentual de leitores e livros lidos. Mas, não somente os compradores serão prejudicados. Essa elevação no preço vai impactar a renovação de acervos nas bibliotecas e inviabilizar muitas pequenas editoras e livrarias que já sofrem o impacto da crise econômica e para quem será muito difícil absorver o custo dessa possível tributação em razão da tiragem pequena.

LEQT: Como você, integrante da LEQT, avalia o fato de o país ainda ter um percentual muito alto de cidades sem bibliotecas? Qual é o perfil dos usuários desses equipamentos e quais são seus hábitos de leitura? E como atrair os estudantes para esses espaços, em especial os jovens?

Zoara: Realizamos, no ano passado, a pesquisa Retratos da Leitura – Bibliotecas Escolares para avaliar o impacto das bibliotecas na aprendizagem dos alunos. A pesquisa foi aplicada em mais de 500 escolas pelo Brasil e os resultados foram analisados com base nas avaliações dessas escolas pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e segundo as diferentes configurações e atividades oferecidas pelas bibliotecas. O estudo mostrou que a existência da biblioteca na escola impacta positivamente na aprendizagem, em especial, quando o aluno é de origem social mais vulnerável. No entanto, cerca de 60% das escolas não têm bibliotecas ou salas de leitura. A biblioteca pública, muitas vezes, é o único equipamento cultural da cidade, quando existe. A pesquisa mostra que os brasileiros percebem a biblioteca como um lugar para estudar e para estudantes. Temos aqui outro problema. Mesmo quando temos uma biblioteca no bairro ou na cidade, ela não é frequentada pela comunidade. Os entrevistados disseram que frequentariam mais as bibliotecas se estas tivessem acervos atualizados e atendessem a seus interesses, fossem mais próximas e oferecessem atividades mais interessantes. Além de revisão do modelo para uma biblioteca ‘viva’ e aberta, os entrevistados sugeriram atividades culturais e de promoção da leitura, convidando autores locais; discussões sobre temas que interessem à comunidade, indicando bibliografia para aprofundar; rodas de leitura; e tantas outras atividades que promovam o compartilhamento das experiências de leitura, estimulando comunidades leitoras. Em relação aos estudantes e jovens, seria fundamental essas atividades estarem integradas às atividades propostas pela escola.

LEQT: Qual é a importância das bibliotecas comunitárias para a formação de leitores no país?

Zoara: Elas são fundamentais para a formação de leitores no mundo todo. Esses espaços de encontros da comunidade permeados por leitura, histórias e narrativas de vida e pela construção de conhecimentos têm o poder de transformar ao dar voz a jovens que estão fora da escola. São espaços de socialização e de compartilhamento de experiências de leitura onde a literatura pode trazer conhecimento sobre outras realidades, culturas e emoções, despertando sonhos e empatias. Apresentam um lugar no mundo e desperta a consciência sobre privilégios, oportunidades e direitos. A pesquisa diz que a família é a principal influenciadora no despertar do gosto pela leitura, mas uma família leitora. Não é esse o retrato da família nas comunidades brasileiras. As bibliotecas comunitárias surgem nesse vácuo entre famílias e escolas. São pontes entre realidades que aproximam pela literatura. Estão abertas e em conexão com o ambiente. Não inibem em prédios suntuosos, espaços de silêncio e com atendentes que impõem a realização de um cadastro e perguntam o endereço antes de emprestar um livro. Ao contrário, acolhem.

LEQT: A ampliação do volume e da diversidade dos acervos é apontada como um fator que aumentaria a frequência às bibliotecas. Como isso pode ser feito?

Zoara: Entendo que é responsabilidade dos governos garantir o pleno funcionamento das bibliotecas. Dependemos de políticas públicas e de programas do governo que garantam essa atualização dos acervos em bibliotecas públicas e escolares. Infelizmente, o Programa Nacional Biblioteca da Escola está suspenso desde 2016. Certamente, isso já está refletido na piora da avaliação dos acervos nas bibliotecas escolares. Os Planos Estaduais e Municipais do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca são fundamentais para garantir não somente a atualização dos acervos em bibliotecas baseada em pesquisa e escuta, mas também os recursos para a gestão e a manutenção para o pleno funcionamento e atendimento desses espaços, envolvendo estrutura física, equipamentos, acesso digital, acessibilidade, bibliotecários e profissionais capacitados e atividades culturais. O terceiro setor e as organizações da sociedade civil podem ser parceiros na criação e implementação dos planos, contribuindo com metodologias, pesquisas e conhecimento para a formação de mediadores e outros profissionais e com assessoria à gestão e à instalação de bibliotecas.

LEQT: No atual contexto político, o que pode ser feito para defender o direito ao livro e à leitura? Qual é o papel dos diferentes atores do campo no enfrentamento dos desafios e ameaças a esse direito?

Zoara: Acredito que reunir quem defende os mesmos princípios e direitos seja fundamental em momentos de tanta polarização política. A Rede LEQT presta um importante serviço neste momento ao reunir instituições e pessoas que defendem a democracia e acreditam no poder de transformação social da educação e da leitura. É fundamental também manter os posicionamentos em defesa do que acreditamos por meio do advocacy. O desenvolvimento social e humano de uma sociedade depende do livro e da leitura como ferramentas para a educação e a produção do conhecimento e da ciência. Essa é a crença e a missão que devem unir e orientar as ações de todos os atores neste momento de tanta turbulência política.

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