Pra que serve a utopia?

Sabemos que o tempo necessário para a construção de uma cultura leitora não pode ser o tempo roubado. Ler não equivale a entreter. Ler em profundidade demanda um tempo em profundidade

Sobre Christine Fontelles: Socióloga, concebeu e coordena a Campanha “Eu Quero Minha Biblioteca” desde 2012, quando atuava como diretora de educação do Instituto Ecofuturo, do qual foi co-idealizadora e onde esteve por 15 anos como diretora de educação; membro do Conselho Consultivo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

Publicado conjuntamente com a Biblioo Cultura Informacional

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”

Foi assim que o cineasta Fernando Birri a descreveu. Mas hoje, neste momento em que escrevo, hoje é um dia em que está bem difícil “vê-la”. Deve ter se afastado um tanto bem enorme com o assassinato de Emily e Rebeca. Ficamos em suspensão. Desacreditando. Porque se a morte de uma criança já é em si uma profanação da vida, vidas interrompidas por “balas perdidas” é inominável. É barbárie. O chão abre. A garganta seca. O peito dói. A voz emudece. E o que posso-devo eu? O que pode-deve você? O que podemos-devemos contra a barbárie? Não deixar de caminhar. E caminhar ao lado das melhores companhias. Porque é na potência dos bons encontros que somos e podemos mais.

Há dois meses eu já sabia sobre o que queria falar neste último artigo de 2020, um ano que nunca acabará. Tudo nele e tudo dele seguirá marcado em nós. Somaticamente. Eu queria escrever pra dizer do que nos mobiliza. De quem nos mobiliza. Foi então que concluí que era assunto que pra acreditar de verdade mesmo precisava de um personagem, um personagem de verdade. Com nome, sobrenome, corpo e alma. E pensei em um rapaz que conheci de perto em 2018. Um jovem com nome de profeta. Um jovem chamado Isaac. Isaac Faria de Souza. Porque Isaac é caminhante. E nós, eu e você e tantas pessoas mais, precisamos saber quem, como e por onde andam caminhantes da utopia. Saber para caminhar junto. Para atuar junto. Porque desistir não é uma opção.

Nesse pequeno intervalo de tempo em que iniciei a conversa com Isaac, a vida de Emily e Rebeca é brutalmente interrompida. Eu já tinha lido a notícia, que recebi enviada pelo Isaac para mim via whatsapp com o comentário “Perdemos nossa humanidade”. Então perguntei a ele se queria agregar seu depoimento. Ele escreveu:

“Todos os dias eu leio jornais e revistas on-line, não assino porque é uma fortuna. Às vezes algum amigo cede ou copia a matéria de algum veículo de comunicação. Temos que estar bem informados: a informação é poder. Quando comecei minha luta por melhoria de mim mesmo e do entorno, fiz um pacto comigo mesmo de não compartilhar esse tipo de notícia, mas essa mexeu comigo, me fez me lembrar da minha infância, pulando cadáveres para comprar pão. Mas ainda tive muita esperança. A violência nos tira muitas coisas todos os dias, mas ainda estou vivo. É inconcebível que as autoridades em todas as esferas, os famosos e quem tem grana se cale e aceite o Estado de Guerra no qual nosso País se encontra. Nesse ano de 2020 foram 20 crianças baleadas no Rio de Janeiro, 8 morreram. Lamento muito e fico perplexo.”

Li que Isac significa “aquele que sorri”. Assim que é. Isaac não ri. Isaac sorri. Sempre que vejo ou ouço Isaac ele é pura temperança, que é coisa que se apura com o tempo. Eu, eu vivo em busca. Isaac já nasceu com. Temperança que combina com esperança; pensamento que transforma em ação. TransformAção. Seu ativismo começou ainda menino no bairro onde mora até hoje: o Jardim Ângela, considerado pela ONU em 1996 como o lugar mais violento do mundo, é o lugar com a mais baixa expectativa de vida da maior metrópole do país – 58,3 anos, “18 anos a menos do que a média nacional e quase 22 a menos do que o local com maior expectativa de vida da capital, o Jardim Paulista, bairro nobre da capital paulista”. 

“Na quinta série uma professora pediu para que estudantes escrevessem uma carta para algum amigo – aliás, aquele dia era o Dia do Amigo. Resolvi escrever para a diretora da escola e incentivei meu amigo Lucas Moura a escrever para a vice-diretora. Escrevi sobre os problemas da escola, o excesso de grades, a ausência de alguns professores durante e o ano e a falta de ações e atividades diferenciadas na escola. Depois disso comecei a me reunir em pequenos círculos no intervalo para conversar com alguns colegas sobre os problemas, dificuldades e o que poderíamos fazer para movimentarmos de forma positiva a escola. Assim começa minha mobilização fora de casa”.

Costumo dizer que são druidas os seres humanos que têm a mais absoluta convicção de que saber ler não é opção, é condição na nossa espécie. Não a leitura rasa, superficial, desprovida de sentidos e compromisso com a vida, mas a leitura que nos põe em movimento para indagar a vida. Uma leitura que, como dizia o poeta Bartolomeu Campos de Queirós, “nos torna sujeitos e não nos sujeita” às condições impostas por um modo de vida que tritura vidas e afugenta toda a forma de vida que não se curva diante da estandartização do pensamento e do comportamento, do lucro a qualquer preço. Isaac é um deles e desde sempre caminha no miudinho do chão e dos dias promovendo bons encontros mediados pela leitura partilhada de literatura. E tem plena convicção de que este é, sim, uma ação política.

Em 2010, então com 16 anos, funda com amigos o Núcleo de Jovens Políticos com o objetivo de mobilizar a juventude da região, entre 12 e 19 anos, para participar na construção de políticas públicas locais, ainda hoje extremamente deficitárias no Jardim Ângela para dar conta de acolher as demandas da comunidade em todas as linhas de frente. Desde sempre realizam encontros, atos públicos, ações afirmativas e encaminham demandas locais ao poder público, “uma iniciativa que surge da necessidade de se fazer ouvir numa região abandonada pelo Estado”.

Um dos destaques da atuação do NJP é o Clube de Leitura Quilombo Mirim, realizado na Escola Estadual Amélia Kerr Nogueira em parceria com a editora Companhia das Letras entre 2015 e 2018, reunindo estudantes para ler e debater obras literárias. “Na nossa memória como estudantes de escola estadual percebemos que basicamente não tínhamos acesso à leitura. Em seguida, como jovens engajados, entendemos que o alicerce da justiça social e corrupção é a ignorância, e fomentar o acesso ao livro é ato de revolução num país que omite sua própria história para fazer a manutenção de privilégios para sua elite”.

“Com essa premiação e por conta do trabalho intenso do Clube de Leitura Quilombo Mirim e a visibilidade que adquirimos, o Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e o Consulado da Alemanha nos ofertou uma vaga no projeto idealizado e construído por essas duas instituições. O projeto, em resumo, era um Clube de Leitura que reunia jovens de toda a cidade para ler diversos livros recomendados por parceiros. Além do prazer de ler e conhecer diversas histórias,  os jovens participantes ganharam uma bolsa-auxílio de R$ 800,00, que para mim é um mega incentivo e uma mudança de realidade, pois boa parte dos jovens, quando chega nessa idade do primeiro emprego, precisam trabalhar em Shopping Center, MacDonald em jornadas exaustivas, recebendo o mesmo valor citado. Então, para mim, esse projeto foi magnifico: estava pagando para jovens lerem livros e encontrar pessoas, uma oportunidade que não tive na mesma idade.”

Sua jornada leitora foi resultado do incentivo da mãe – com a leitura de textos bíblicos –, da professora da primeira série e de um professor de História chamado Jesuíno. Isaac tem um depoimento contundente para a recorrente sentença de que “jovens não gostam de ler” – eu concordo com ele em gênero, número e grau e nem poderia ser diferente, as neurociências, a sensatez e pesquisas sobre comportamento leitor indicam a importância do binômio escola e família:

“Jovens não gostam de pegar ônibus lotado às 4 horas da manhã que demoram 2hrs30min para chegar no centro expandido, que faz parecer que não moram ou não são e nem têm direito à cidade. Jovens não gostam de olhar a comunidade e perceber a falta de infraestrutura. Tenho o sentimento de angústia em saber que estamos num distrito com poucas bibliotecas públicas ou comunitárias, num lugar onde a prioridade é o arroz e o feijão e não o livro, e é compreensível. Então, essa sentença é violenta com tantas questões que antecedem que devemos refletir e cuidar.”

Perguntei ao Isaac, que tem um olhar atento para o entorno, quais seriam os desafios que  temos para na construção de cultura leitora. Afinal, sem leitura de entorno pouco ou nada  que façamos será efetivo e sustentável. Porque não se corta braço e perna da realidade para encaixar uma ideia, mas podemos, sim, aprender a superar os limites impostos pela  realidade colocando em ação estratégias convergentes. Escute a resposta – porque aprender a ouvir é, também, um desafio civilizatório:

“O desafio social é o tempo, daqueles que estão na periferia e a todo momento estão correndo para alcançar incontáveis objetivos.”

Sabemos que o tempo necessário para a construção de uma cultura leitora não pode ser o tempo roubado. Ler não equivale a entreter. Ler em profundidade demanda um tempo em profundidade. Deitar raiz. Árvore robusta sem raiz profunda não para em pé. As pessoas que precisamos, podemos e devemos ser para implementar no mundo os cuidados com todas as vidas pede, pede não, implora!, por tempo de qualidade. Escrevi minhas ideias sobre este desafio nos idos de 2008.

Recentemente, lendo a Autobiografia de Charles Darwin, encontrei eco nas palavras de Ricardo Ferreira, pernambucano, químico e físico, presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência: “O homem, produto da seleção natural, retém qualidades de agressão que foram muito úteis aos seus ancestrais, mas que, em muitos casos, são contrárias ao sentimento de solidariedade, essencial para a construção de uma sociedade justa, feliz e abrangente. Eis aí o dilema central que a humanidade ainda não conseguiu resolver”.

Então, as estratégias a serem colocadas em ação devem prever uma série de desafios e o luxo que não temos é o de não ligar todas as suas pontas, entre as quais está, sem dúvida alguma, a garantia de formação leitora de quem estará responsável por formar leitoras e leitores. Tratei sobre o tema no artigo Darwin e as bibliotecas. Bibliotecas à mão cheia, nas escolas abertas à comunidade, públicas e comunitárias no miudinho do chão em que se pisa, promovendo leituras e encontros entre leitoras e leitores, fervilhando de ideias, com condições de empréstimos e horários de atendimento bem amplos – abertas em feriados e finais de semana – para não deixar ninguém de fora. E que assim alimente esta potente ideia do Isaac:

“Todos deveríamos participar de um Clube de Leitura em nossa comunidade. A leitura coletiva aproxima as pessoas. Pra mim a rede se constrói nos encontros”

E isso é só um pedaço, um bom pedaço, da rede de cuidados que precisam estar no ar para garantir que todo mundo tome para si a palavra para construir pontes com o simbólico, com o pensamento crítico e sensível, com a empatia, com todo mundo entre todo o mundo, para que possamos ser tão melhores do que vimos sendo.

Nesse sentido, de sermos melhores e agirmos em consonância com o que queremos ver de  pé no mundo, a palavra escrita acessada e apropriada para que dela façam uso para construir convergências e o novo bom e melhor, deixo aqui a dica tão bacana do Isaac:  “comprar livros e presentear os jovens e adolescentes que não têm condições de comprar  um livro. Deveríamos fazer isso ao menos uma vez por mês. Com certeza veríamos o crescimento da leitura no Brasil e sobretudo daqueles que mais precisam da educação para quebrar as correntes da desigualdade”.

Perguntei ao Isaac o que ele diria para o menino que foi um dia:

“Seja perseverante, insista, continue criticando e não desista da luta pois é ela que vai te fazer bem e te transformar. Puxa!!! conseguimos abrir a biblioteca da escola, na qual a porta era cheia de cadeados. Sempre vale a pena estar à disposição das pessoas e do bem. Temos muito o que fazer, mas já podemos olhar com muita alegria e esperança os degraus que estamos subindo.”

Em 2021 quero seguir caminhando no mundo, em direção à utopia, ao lado de gente como Isaac. Não importa o quanto ela se afaste. Desistir não é uma opção. E você?

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