Tempo de Aprender é exemplo do que não fazer, afirma coordenadora pedagógica da CE CEDAC
Em entrevista à Rede LEQT, Paula Stella avalia que o programa federal é o oposto do que os professores necessitam e merecem e está fadado ao fracasso
Em entrevista exclusiva à Rede LEQT, Paula Stella, coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa CEDAC, apresenta uma análise crítica do Programa Tempo de Aprender, desenvolvido pelo Ministério da Educação. Em pauta, foram discutidos os principais pontos do artigo produzido pela especialista, no qual ela reflete sobre a metodologia e as concepções teóricas presentes na Política Nacional de Alfabetização em vigor. Paula traz importantes elementos para o debate e defende que a iniciativa é o oposto do que os professores necessitam e merecem, além de estar fadada ao fracasso.
Paula Stella é pedagoga e mestre em Didática da Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Dedicou-se inicialmente à docência e à coordenação pedagógica de turmas de educação infantil e alfabetização. Trabalha como formadora de educadores de redes públicas de ensino, tendo colaborado em projetos implementados pelo Centro de estudos da Escola da Vila, Comunidade Educativa CEDAC e Laboratório de Educação. Leciona em cursos de graduação em Pedagogia e pós-graduação do Instituto Superior Vera Cruz. É coautora de Ensinar: tarefa para profissionais (Record, 2007) e de Formación Docente en lectura y escritura (Paidós, 2009).
Nas próximas páginas, Paula apresenta, em detalhes, as fragilidades dos programas Tempo de Aprender e Conta para Mim, compara com políticas anteriores e demonstra porque as ações não priorizam o letramento, privando os alunos e alunas do contato com textos literários de qualidade e de circulação social.
LEQT: Quais concepções de alfabetização e de criança estão presentes no programa Tempo de Aprender?
Paula Stella: A concepção de criança é muito clara: um sujeito dependente do adulto, pouco inteligente, que não formula hipóteses, não cria explicações e não questiona. Enfim, a criança é vista como desprovida de iniciativa e pouco capaz. Por isso, nunca é convidada a se expressar livremente, devendo ouvir explicações, observar demonstrações, repetir, memorizar o que ouve e vê, treinar o que lhe é ensinado…
Já a alfabetização é entendida como a aprendizagem de seis habilidades básicas: identificação de sons, conhecimento alfabético, fluência em leitura oral, desenvolvimento do vocabulário, compreensão de texto e produção escrita. Tais habilidades devem ser ensinadas de forma explícita e sistemática por meio de explicação, demonstração e exercitação coletiva. Em ambos os casos, observa-se que há importantes retrocessos em relação ao que se construiu no Brasil nas últimas décadas tanto em termos de conhecimentos teóricos como práticos.
LEQT: Qual é a concepção de leitor/leitora que se pode identificar na proposta do Programa?
Paula Stella: Na concepção do programa, ler pressupõe a aplicação das regras do código alfabético para converter letras em sons, o que é denominado decodificar. Pressupõe também a compreensão, isto é, a capacidade de extrair os significados do texto, identificar as mensagens implícitas e explícitas, deixando de se preocupar com a conversão de letras em sons e adquirindo fluência na leitura. De acordo com essa visão, ser leitor é ser capaz de decodificar, de extrair sentidos, de identificar palavras, de percorrer um texto com rapidez.
As atividades sugeridas pelo programa não permitem o estabelecimento de relação entre o que acontece com o leitor e com a leitura na escola e fora dela, o que causa preocupação quanto às consequências desse direcionamento, aos desafios a serem enfrentados pelos leitores em formação, ao longo de seu percurso escolar e de suas vidas, principalmente no que diz respeito ao nível de alfabetismo que alcançarão. No artigo Tempo de aprender – o que não fazer em sala de aula cito exemplos e analiso algumas propostas em que a concepção de leitura adotada pelo programa fica evidente nas tarefas solicitadas às crianças.
LEQT: Em que medida o programa se aproxima ou se distancia de políticas e programas anteriores e dos marcos legais existentes?
Paula Stella: Embora a Base Nacional Comum Curricular seja citada, é inegável que as relações existentes são tênues e distantes. As fichas que descrevem e orientam a realização das atividades com os alunos permitem constatar esse tipo de relação. Nelas existe um campo específico em que se indica o objetivo de aprendizagem e desenvolvimento previsto na Base que é considerado correlato ao exercício proposto às crianças. No entanto, em várias fichas esse campo não é preenchido, o que leva a supor que as propostas ali registradas não são condizentes com o documento oficial que define as aprendizagens essenciais.
Exemplificando, diria que o título de uma dessas atividades, Identificação de categorias conceituais, sugere uma relação apenas tangencial com uma das dez competências específicas de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental: “Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam em diferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência e criticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos, e continuar aprendendo”.
LEQT: Quais as principais diferenças entre o Tempo de Aprender e o PNAIC?
Paula Stella: Quando comparamos com o PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), observa-se também um distanciamento em vários aspectos, desde o modo como se entende a alfabetização até a maneira como se concebe e concretiza a formação dos professores. O PNAIC preconizava que alfabetização e letramento deveriam ser desenvolvidos de forma integrada e simultânea; recomendava alfabetizar letrando, ou seja, ensinar o sistema de escrita alfabética, permitindo que os aprendizes vivessem práticas de leitura e de produção de textos, incorporando os conhecimentos sobre a língua escrita. No programa Tempo de aprender a alfabetização é priorizada em detrimento do processo de letramento.
Já a formação dos professores no PNAIC, feita presencialmente na escola, ao longo de dois anos, previa a reflexão sobre a própria prática e a troca de experiências entre os participantes como elementos essenciais, o que não se aplica ao programa atual. No Pacto a formação dos professores foi delegada aos chamados orientadores de estudo, pertencentes ao quadro das redes municipais de ensino e com experiência como tutores de outro programa, desenvolvido anteriormente, denominado Pró-Letramento. Estes, por sua vez, recebiam a formação de uma rede de universidades federais e de determinadas universidades estaduais, algumas das quais foram encarregadas de produzir o conteúdo e conceber a metodologia do curso. No Tempo de aprender, a etapa inicial da realização da formação prevê que cada profissional opte por fazer o curso de forma autônoma, independentemente de seus pares (indicando que em uma etapa seguinte será prevista a adesão de redes municipais ou estaduais de ensino). Algumas poucas universidades e institutos brasileiros e portugueses foram responsáveis pela elaboração do programa.
LEQT: Qual o impacto das práticas propostas no Tempo de Aprender para a formação de leitores, uma vez que as práticas sociais de leitura não são consideradas nas atividades recomendadas?
Paula Stella: Acredito que o impacto negativo seja enorme porque os estudantes não aprenderão a enfrentar-se com textos reais e, portanto, não aprenderão que os textos que usamos nas práticas sociais de leitura são inúmeros, extremamente diversos e possuem propósitos variados. Assim, provavelmente, terão dificuldades para interagir e dialogar com eles, compreendê-los e utilizá-los para satisfazer suas necessidades. Dificilmente aprenderão a gostar de ler e é improvável que possam se converter em leitores independentes e proficientes.
LEQT: Quais são os aspectos mais críticos da proposta de formação de professores prevista no programa?
Paula Stella: A formação à distância e autoinstrucional pauta-se em textos e vídeos, não prevê interação entre os cursistas nem, tampouco, entre eles e os responsáveis pela concepção e desenvolvimento do curso. Tal como ocorre com as crianças que aparecem nos vídeos que participam das atividades do programa (que, aliás, são nitidamente artificiais e irreais), não há espaço para que o cursista se coloque, exponha suas dúvidas, relacione as propostas com a sua prática pedagógica.
Na minha opinião, essa opção metodológica, aliada às concepções subjacentes ao curso (de alfabetização, de criança, de ensino e de aprendizagem), fazem com que a proposta de formação de professores seja o oposto do que os docentes necessitam e merecem, e principalmente, seja fadada ao fracasso. Afinal, há muito tempo se sabe que não basta oferecer a eles conteúdos teóricos e prescrições do que fazer em sala de aula… É preciso criar condições para que reflitam sobre suas práticas à luz de contribuições teóricas, juntamente com seus pares e parceiros mais experientes, para que identifiquem problemas e proponham soluções, as experimentem, documentem e avaliem, enfim, para que se engajem na transformação da própria prática podendo contar com a parceria de um formador que os acompanhe e oriente. É preciso valorizar verdadeiramente o que sabem e respeitar sua condição de profissional competente e criativo. É o que procuramos fazer nos projetos de formação de educadores que desenvolvemos na CE CEDAC.
LEQT: Em seu artigo, você menciona e discute a ausência da literatura infantil nas atividades propostas. Como essa lacuna pode impactar a relação que a criança estabelece com a leitura e com o próprio objeto livro tão importante no processo de formação de leitores e que, sabemos, é importante que ocorra o mais cedo possível no processo de formação das crianças?
Paula Stella: Considero muito grave essa lacuna, que não é casual, mas intencional. Grave porque os seres humanos têm direito à literatura e a tudo o que ela propicia e, como sabemos, a escola é a instituição que pode assegurar o acesso das crianças a esse patrimônio da humanidade. Grave também porque a Política Nacional de Alfabetização (PNA) opta por delegar aos familiares das crianças a tarefa de integrá-las à cultura escrita por meio do Programa Conta pra mim em uma flagrante, perversa e inaceitável transferência de responsabilidade, ainda mais em um país que ainda hoje conta, vergonhosamente, com uma considerável parcela de analfabetos e analfabetos funcionais que não tiveram oportunidade de se converter em leitores.
Dessa forma, a literatura infantil estaria supostamente presente no Conta pra mim, em um acervo de quarenta livros de gêneros diversos incluindo adaptações de narrativas clássicas como João e Maria e O flautista de Hamelin, produzidas por um único autor e uma única ilustradora, sendo que no Brasil há inúmeros autores e ilustradores que criam obras encantadoras e diversificadas, muitos dos quais premiados e reconhecidos internacionalmente. Essas adaptações empobrecem, restringem, alteram e até mesmo censuram trechos das narrativas originais por razões ideológicas e por terem como leitor potencial a criança mencionada anteriormente. Assim sendo, diante da ausência da verdadeira literatura infantil em ambos os programas integrantes da PNA, cabe indagar o que se deseja que as crianças aprendam com tamanha limitação e por quê.
LEQT: Qual a sua opinião sobre a qualidade dos textos indicados pelo programa Conta pra Mim?
Paula Stella: Não são textos literários. São textos fabricados, simplificados, esvaziados e irreais, como o seguinte, utilizado em uma atividade de leitura: “As flores estão lindas! Será que a primavera está chegando?” Além disso, é importante mencionar que nas raras ocasiões em que um texto literário é utilizado em uma aula, ele está invariavelmente escrito na lousa ou em uma folha de papel avulsa; inexplicavelmente, sua leitura nunca se apoia em um livro.
LEQT: De modo geral, como pesquisadores da área e educadores reagiram ao Programa Tempo de Aprender?
Paula Stella: Com críticas consistentes e variadas. Critica-se, entre outras coisas, o fato de que ele ignora o conhecimento teórico e didático sobre as relações entre letramento e alfabetização produzido nas últimas décadas por pesquisadores e educadores e a ideia de que o professor é um aplicador de atividades, subtraindo dele a essência da profissão docente: a reflexão sobre a prática pedagógica.
LEQT: Há aspectos positivos no programa?
Paula Stella: Infelizmente, não identifico aspectos positivos. Poderia ser positivo o fato de que o curso é acessível a qualquer professor ou coordenador pedagógico, por ser formatado como uma atividade de ensino à distância, gratuita e oferecida pelo Ministério da Educação. Contudo, da forma como foi pensado (conteúdo e metodologia), não é… Mais uma vez, desperdiça-se muito dinheiro público com um programa que não apenas não contribui para resolver o problema a que se propõe, mas pode, inclusive, agravá-lo.
LEQT: Como os professores devem reagir à proposta?
Paula Stella: Penso que os docentes devem, como sempre, agir de acordo com o que consideram que faz sentido para eles, ou seja, trabalhar com o que é coerente com o que pensam e sabem, considerando o currículo da rede de ensino em que atuam, o projeto pedagógico da sua escola, e, principalmente, o que observam que funciona para que todos os seus alunos, sem exceção, aprendam. Em alguns casos, acredito que isso signifique que devem continuar alfabetizando como costumavam fazer antes de frequentar o curso…
LEQT: Assegurar o direito à alfabetização ainda é uma meta distante no Brasil, por que isso ocorre?
Paula Stella: Talvez porque no campo da educação os resultados não sejam imediatos, o que torna necessário investir e acompanhar de perto processos de longa duração, como é o caso da alfabetização. E, como sabemos, a lógica dos governantes é outra, bem diferente dessa!
LEQT: Quais aspectos os gestores públicos e os formuladores de políticas públicas devem levar em conta para desenhar e implementar uma boa política de alfabetização?
Paula Stella: Em primeiro lugar, devem considerar o compromisso com a aprendizagem de todos os estudantes como principal diretriz da atuação profissional dos diferentes atores do sistema educacional (desde o Secretário de Educação até os funcionários de apoio da escola, passando, evidentemente, por gestores escolares, coordenadores pedagógicos e professores), monitorando-a e zelando por ela continuamente. Embora óbvia, essa afirmação é necessária porque, muitas vezes, perde-se de vista esse fato e a consequência é que se desperdiça investimento, tempo e energia sem que o principal seja assegurado, sem que os estudantes façam as conquistas previstas e necessárias. Depois devem evitar a falta de continuidade nas políticas públicas e nas ações locais, como o investimento na formação permanente dos professores alfabetizadores. E, por fim, devem cuidar da organização e da estruturação da rede de ensino e da escola com vistas à superação de eventuais entraves que possam representar obstáculos à realização do propósito de assegurar a aprendizagem de todos os alunos.